Comentário ao Evangelho de Lucas, capítulo 6, versículo 1-5
Introdução
Aqueles que trabalham normalmente gostam quando chega a sexta-feira. O último dia da jornada de trabalho significa que temos dois dias de descanso, o sábado e o domingo. O fim de semana existe na nossa cultura pelos vestígios da influência judaico-cristã no nosso pensamento e governo, mas poucos sabem a sua origem. O sábado tem origem no relato da Criação em Génesis, e o domingo é para os Cristãos o Dia do Senhor, instituído pelo imperador romano Constantino como dia oficial de descanso a 7 de Março de 321 d.C.. A questão do Sábado foi um motivo de controversa entre Jesus e os fariseus e no episódio que vamos meditar hoje vamos ver o que o Senhor Jesus tem a dizer sobre o Sábado e o que significa para nós hoje.
Contexto
Na harmonia dos Evangelhos, este episódio acontece após a cura de um paralítico no tanque de Betesda, descrito no Evangelho de João, capítulo 5. Este milagre de Jesus levanta grande controvérsia pois acontece no dia de Sábado e os escribas e fariseus conspiravam o assassinato de Jesus como diz o texto:
16 Por isso, os judeus começaram a perseguir Jesus, porque ele fazia essas coisas no sábado.
17 Mas Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também.
18 Por isso, os judeus procuravam ainda mais matá-lo, não só porque infringia o sábado, mas também porque dizia que Deus era seu Pai, fazendo-se igual a Deus.
Evangelho de João 5.16-18
Este episódio compõe um dos três episódios em que Jesus confronta os fariseus na questão do sábado, o que lemos em João capítulo 5, este e o que vem a seguir em que Jesus cura um homem na sinagoga ao sábado, mostrando a Sua autoridade como Filho de Deus e escandalizando os fariseus.
Comentário
v. 1 O sábado e os discípulos esfomeados – O Sábado é um conceito muito importante em toda a narrativa bíblica, começando logo com a criação.
Lemos no livro de Génesis, capítulo 2:
1 Assim foram concluídos os céus e a terra, com todos os seus elementos.
2 No sétimo dia, Deus já havia completado a obra que fizera; nesse dia ele descansou de toda a sua obra.
3 E Deus abençoou e santificou o sétimo dia, porque nele descansou de toda a obra que havia criado e feito.
Génesis 2.1-3
Quando Deus deu a Lei a Moisés no monte Sinai, disse, no 4º mandamento:
8 Lembra-te do dia de sábado, para o santificar.
9 Seis dias trabalharás e farás o teu trabalho;
10 mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu animal, nem o estrangeiro que vive contigo.
11 Porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e no sétimo dia descansou. Por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou.
Êxodo 20.9-11
Vemos também este mandamento repetido no livro de Deuteronómio 5.12-14. Então, assim como Deus descansou das Suas obras ao sétimo dia, também o Seu povo deveria descansar ao sétimo dia.
Acontece neste dia, que os discípulos de Jesus passam por um campo de trigo. Mateus acrescenta que os discípulos sentiram fome, segundo a tradução Almeida séc. XXI.
Este ato de debulhar com as mãos e comer era um movimento de fricção com as mãos, contendo a espiga no meio, onde a separação entre o trigo e a casca seca acontecia, sendo possível retirar os grãos para comer. Acontece que, para os fariseus isto constituia trabalho.
v.2 A acusação dos fariseus – Os fariseus acusam os discípulos de Jesus de fazerem algo que não era permitido ao Sábado. O ato em si não era proibido, até o vemos contemplado na Lei:
25 Quando entrares na plantação do teu próximo, poderás colher espigas com a mão, mas não usarás a foice na plantação do teu próximo.
Deuteronómio 23.25
O problema estava em este ato estar a ser realizado no dia de sábado. Acontece que, no tempo de Jesus, os fariseus teriam acrescentado a esta Lei do Sábado 39 artigos, na tentativa de descrever o que constituia trabalho – obra chamada de os 39 Melachot. No artigo 33, actividades como colher uma flor e colher um fruto de uma árvore são abrangidas. O mesmo se aplica ao corte da relva. Também foi legislado que não se manuseasse nenhuma flor ou planta em crescimento. Plantas em crescimento. Seria igualmente proibido subir a uma árvore ou cheirar uma flor em crescimento. Os frutos que caem de uma árvore no Sábado não podem ser utilizados no mesmo dia.
v.3-4 Jesus intercede pelos discípulos – Jesus cita o episódio no 1º livro de Samuel, capítulo 21.1-6. Nesta altura na história de Davi, ele é fugitivo de Saul. Chegando à cidade de Nobe, aborda o sacerdote Aimeleque, juntamente com os seus companheiros. Aimeleque permite que Davi e os seus companheiros comam dos pães sagrados (ou pães da proposição). Estes pães consagrados como oferta ao SENHOR foram requiridos, primeiro em Êxodo 25.30, e depois em Levítico 24.5-9.
5 Também pegarás da melhor farinha e com ela assarás doze pães; cada pão terá dois décimos de efa.
6 E os porás diante do Senhor, em duas fileiras, seis em cada fileira, sobre a mesa de ouro puro.
7Sobre cada fileira, porás incenso puro, para que esteja sobre os pães como um memorial, isto é, como oferta queimada ao Senhor.
8 Isso será feito diante do Senhor todo sábado, continuamente, em favor dos israelitas; é uma aliança perpétua.
9 9 Êx 29.33; Mt 12.4; Lc 6.4 Os pães pertencerão a Arão e seus filhos, que os comerão em lugar santo, pois são sua porção santíssima das ofertas queimadas ao Senhor, por estatuto perpétuo.
Levítico 24.5-9
Então, apesar destes pães serem consagrados a Deus, para serem comidos exclusivamente pelos Levitas que serviam no templo, nesta ocasião com David, Jesus afirma que não houve transgressão. Esta resposta de Jesus dá-nos duas lições valiosas.
Jesus interece pelos Seus. Tal como Jesus intercedeu pelos discípulos contra os fariseus acusadores, também Ele intercede por nós contra o acusador diante do Pai. Hebreus 7.25 diz:
25 Portanto, também pode salvar perfeitamente os que por meio dele se chegam a Deus, pois vive sempre para interceder por eles.
É pelo nosso mediador e intercessor Jesus que podemos chegar a Deus. É por meio da Sua obra Redentora na cruz que podemos aproximarmo-nos do trono da graça (Hb 4.16). Jesus intercede por nós e só assim podemos estar reconciliados com o Pai.
O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Marcos 2.27 acrescenta esta importante frase de Jesus que nos diz que o dia de Sábado foi feito para ser uma bênção, e não um fardo para o homem, como fizeram os fariseus com as suas adições superficiais e humanas à Lei. J.C. Ryle vai escrever no seu comentário a Lucas:
“Daí, Jesus conclui que aquele que permitiu que se infringissem as regras de seu templo, em caso de necessidade, pode também permitir indubitavelmente, que se trabalhe no dia de sábado, sempre que houver alguma coisa que realmente seja imprescindível”
J.C. Ryle, Comentário expositivo no Evangelho segundo Lucas, p.79. 1955, Confederação Evangélica do Brasil
Desta passagem retiramos a noção de que não existe ritual ou cerimónia mais importante que as necessidades básicas e imprescindíveis da vida quotidiana. Este foi o erros dos fariseus, em que o Evangelho de Mateus acrescenta algo ao que Jesus disse que nos mostra isto:
7 Se, porém, soubésseis o que significa: Quero misericórdia, e não sacrifícios, não condenaríeis os inocentes.
Mateus 12.7 (Oseias 6.6)
Para Deus, é mais importante a misericórdia, a justiça e o caminhar humilde com o SENHOR do que sacrifícios ou rituais.
v.5 O Filho do Homem é Senhor do Sábado – Jesus remata com esta afirmação chocante para um judeu do primeiro século, que Ele mesmo é Senhor do Sábado. Esta afirmação tem várias implicações.
A primeira, Jesus é Deus. Na contenda sobre o sábado no Evangelho de João, Jesus vai afirmar algo que vai incitar o ódio dos fariseus relacionado com sábado:
“… Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também…”
João 5.17
É neste contexto que Jesus abre um pouco mais o véu sobre quem Ele é – Deus encarnado (Jo1.1), Deus connosco (Mt 1.23). Sendo que o Sábado foi instituído na Criação pelo próprio Deus, Jesus ao afirmar que é Senhor do Sábado, Ele está a afirmar que é Senhor de toda a Criação, que é Deus. E os fariseus bem entenderam isto, pois procuraram matar Jesus por causa desta mesma afirmação.
A segunda, sendo Jesus SENHOR do Sábado, e tendo instituído o Seu dia ao ressuscitar no primeiro dia da semana, devemos observar este dia. Nos dias que correm, infelizmente, para muitos crentes qualquer desculpa serve para não estar presente no culto corporativo. Contudo, consideramos que o guardar do Dia do Senhor é parte fundamental da vida cristã, tendo como excepção como vimos anteriormente, as obras de necessidade ou misericórdia.
O Artigo 15 da confissão de fé de New Hampshire de 1833:
Cremos que o primeiro dia da semana é o dia do Senhor, ou o sábado cristão; e deve ser mantido sagrado para propósitos religiosos, pela abstenção de todo o labor secular e recreações pecaminosas; pela observância devota de todos os meios de graça, tanto privado quanto público; e pela preparação para aquele repouso que restará para o Povo de Deus.
Infelizmente, para muitos crentes hoje, qualquer desculpa serve para não estar presente no culto corporativo. Vivemos tempos em que qualquer inconveniência serve como justificação para não estar presente no culto. Contudo, para os que creêm em Jesus, salvos pela Graça de Deus soberana, estar no culto corporativo é um ato fundamental para estar exposto aos meios da Graça e crescer na fé.
A terceira, Jesus é o nosso descanso. Jesus é SENHOR da Criação e da Lei. Ele é o nosso Eterno repouso pela Sua obra Redentora. Os Seus descansam das suas obras em Cristo Jesus. Pela Sua grande obra de redenção, a sua obediência activa a todos os mandamentos de Deus Pai, pela Sua morte substitutiva na cruz carregando n’Ele os pecados do Seu povo, pela Sua ressurreição física e ascensão corporal, sentado à destra de Deus Pai, Jesus interecede pelos Seus, e dando descanso ao Seu povo das obras.
O autor da carta aos Hebreus escreve no capítulo 4:
9 Portanto, ainda resta um repouso sabático para o povo de Deus.
10 Pois assim como Deus descansou de suas obras, aquele que entrou no descanso de Deus também descansou das suas.
Hebreus 4.9-10
William Hendriksen, no seu comentário ao Evangelho de Mateus, comentando este episódio, escreve:
Pelo trabalho do sofrimento vicário de Cristo, o grande Sumo Sacerdote, assegurou ao povo de Deus o descanso sabático eterno. Pela fé nele, os crentes, mesmo agora, entram no Seu descanso.
New Testament Commentary Matthew, William Hendriksen
Em Jesus, temos total certeza do perdão de pecados, reconciliação com Deus e descanso das nossas obras.
Conclusões finais
Nós hoje guardamos o primeiro dia da semana como o sábado cristão. Devemos zelar por ele, preparar nossos afazeres quotidianos para observar este dia para estar em adoração a Deus, comunhão com os irmãos e descansar dos nossos afazeres.
Contudo, não devemos levar ao legalismo esta observação, mas entender, segundo Jesus ensina, que não existe ritual ou prática que esteja acima das necessidades básicas da vida. Por isso defendemos que a exceção de não guardar o domingo (sábado cristão) existe quando se trata de praticar obras de necessidade ou de misericórdia, ou seja, fazer algo que seja de necessidade essencial ou de ajudar alguém que esteja em sofrimento.
Em último, devemos entender que Jesus é o SENHOR do Sábado, ou seja, Ele é o nosso descanso, das nossas obras. Ele é quem, pelo cumprimento total da Lei, nos dá o descanso das nossas obras. Pela fé n’Ele, temos o descanso das nossas obras e a certeza da salvação.
Descanse em Cristo. Creia n’Ele. Confie n’Ele. Alegre-se n’Ele e viva para Ele. Porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas, amém (Rm 11.36).