Comentário ao Evangelho Segundo Lucas 3.1-20
Introdução
O evangelista Lucas não poupa palavras para situar historicamente o início do ministério de João Baptista. De acordo com a descrição que aqui temos, deduz-se com bastante unanimidade entre os comentaristas que João terá recebido a palavra do Senhor por volta do ano 26 d.C. O capítulo anterior descreve o único episódio da infância de Jesus que temos registado em Escritura inspirada. Entre o episódio da infância de Jesus e o início do ministério de João passam-se 18 anos de completo silêncio escriturístico, quebrado aqui pela “...voz que clama no deserto...”.
Comentário
v.1-2 Sob o jugo de governadores ímpios, instabilidade social e corrupção política, “a palavra veio a João”. Como exemplo da depravação vivida naqueles tempos, Tibério Cesar é tido como um dos imperadores de maior perversão sexual entre os primeiros imperadores romanos, com atos indescritiveis de perversão registados na história e arqueologia. Contudo, é neste contexto que a palavra vem a João. Relembrar que, nos 400 anos anteriores, no chamado período intertestamentário, os judeus estiveram sem revelação profética relevante. Contudo, agora, à maneira do profeta Jeremias 1.1-2 quando diz o texto:
“1 Palavras de Jeremias, filho de Hilquias, um dos sacerdotes que estavam em Anatote, na terra de Benjamim. 2 A ele veio a palavra do Senhor nos dias de Josias, filho de Amom, rei de Judá, no décimo terceiro ano do seu reinado”.
Deus levanta um profeta para se revelar ao Seu povo. Que o nosso coração se eleve em gratidão em perceber como Deus é bom e, na sua condescendência, se revela a nós. Heber Campos, no seu livro, Doutrina da Revelação Verbal ele escreve:
“A revelação verbal divina nada tem a haver com alguma descoberta que o homem faz de Deus, seja por uma pesquisa diligente, seja por outra contingência causal… A verdade de Deus, não é descoberta pelo homem, mas revelada por Deus” (EU SOU – Doutrina da Revelação Verbal de Deus, Campos, Heber, p.151, Editora Fiel, 2017)
Hoje, não temos mais profetas de acordo com o modelo do Antigo Testamento e de João Baptista. O próprio Senhor Jesus diz em Lucas 16.16 “A lei e os profetas vigoraram até João; a partir de então, o evangelho do reino de Deus é anunciado...” Hoje nós temos as Sagradas Escrituras que são a Palavra de Deus que chega até nós, completa e encerrada, como diz a confissão de fé baptista de Londres de 1689, uma confissão histórica das igrejas baptistas, no artigo 6 do capítulo 1, Das Sagradas Escrituras:
“Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a Sua própria glória, e para salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado ou necessariamente contido na Sagrada Escritura, ao que nada, em qualquer tempo, deve ser acrescentado, seja por novas revelações do Espírito, ou por tradições de homens.”
Nos tempos difíceis, de perversão, confusão e de apagão espiritual e moral, a palavra do Senhor veio até nós, por meio das Suas Escrituras. Não precisamos estar mais em silêncio profético. Não precisamos andar na escuridão porque, como diz o Salmista:
“Tua palavra é lâmpada para meus pés e luz para meu caminho.” Salmo 119.105
Devemo-nos apegar à palavra do Senhor que veio até nós e está disponível, e procurarmos lê-la perseverantemente e sistematicamente no meio de uma geração perversa. Como a palavra do Senhor veio a João, ela pode vir a nós todos os dias, todas as vezes que abrimos as nossas Bíblias e nelas buscamos a verdade de Deus.
v.3 João pregou a necessidade de “arrependimento para perdão de pecados”. Ministrando em ambas as margens do Jordão, no deserto, João pregava o “baptismo de arrependimento para perdão dos pecados”. Apesar de ser profundamente desprezada, a doutrina no arrependimento é fundamental, sendo o tema principal do ministério de João, precursor de Jesus. A palavra arrependimento no grego original é μετάνοια, μετανοίας, ἡ (μετανοέω), que significa, segundo o dicionário Strong, uma mudança de mente: demonstrada naquele que se arrepende de um propósito que imaginou ou de algo que fez. Usando as palavras de Jonathan Edwards, teólogo do séc. XVIII, que escreve no seu livro Afeições Religiosas, o arrependimento pode ser definido como:
“...o senso de pouca estima por si mesmo, de não ser nada em si e totalmente desprezível e odioso, acompanhado da mortificação da disposição de exaltar-se a si mesmo e da renúncia espontânea à glória própria” (Afeições Religiosas, Jonathan Edwards, Vida Nova, 2018)
Esta atitude de arrependimento é fundamental na nossa aproximação de Deus. Como diz o salmo 34.18 diz
“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado; ele salva os de espírito arrependido.”
Diante da santidade de Deus, da nossa pecaminosidade, precisamos de nos arrepender. De mudar de mente em relação a quem nós somos diante de Deus, pecadores imundos sem a mínima chance de fazer a mais infima boa obra que nos valha de algo diante de um Deus Santo. Esta era o tema principal da pregação de João – o arrependimento, e mais disto veremos mais à frente no texto.
v.4-6 O ministério de João é descrito pelo profeta cerca de 700 anos antes de João nascer. O cumprimento da profecia em Is 40.3-5, como Deus liderando uma procissão do Seu povo na viagem desde a Babilónia até Jerusalém, até à Terra prometida:
“3 Voz do que clama: Preparai o caminho do Senhor no deserto; endireitai ali uma estrada para o nosso Deus. 4 Todo vale será elevado, todo monte e toda colina serão rebaixados; o terreno acidentado será nivelado, e o que é íngreme será aplanado. 5 A glória do Senhor se revelará; e todos juntos a verão, pois foi o Senhor quem falou.”
Esta profecia é melhor entendida no seu contexto histórico. No século VII a.C. o que restava de Israel era o Reino de Judá ou Reino do Sul da monarquia dividida (I Reis 12:17–18). Nesta altura, Judá era nação vassala da Assíria e a outra grande potência era o Egito. Contudo, uma província da Assíria, a Babilónia, acaba por crescer e subjugar a Assíria. Depois de várias investidas e avisos por parte de profetas como Jeremias, o rei Nabucodonosor da Babilónia destroi a cidade e o tempo de Jerusalém em 587 a.C. e leva o povo de Judá cativo para a Babilónia, onde vai acontecer a história do profeta Daniel. Contudo, Deus levantará um imperador Persa de nome Ciro (Is 45) que será fundamental na relocação do povo de Judá de volta à Terra Prometida. É deste regresso que Isaías fala nesta profecia. Não só se aplica ao contexto histório de Israel, como também apresenta a realidade escatológica de João Baptista como preparador das estradas do coração do povo de Israel para a vinda do Messias. Assim como o SENHOR iria preparar o caminho para o Seu Povo regressar à Terra, João foi incumbido do ministério d’Aquele que iria salvar o seu povo dos seus pecados (Evangelho Segundo Mateus 1.21). Aquilo que Deus fez ao levantar imperadores e mover o seu povo através do deserto de volta à Terra Prometida é apenas um vislumbre daquilo que Deus vai fazer e aqui anunciado por João Baptista, que a Salvação derradeira estava a chegar e de que, em Jesus, todos iriam ver a salvação de Deus.
v.7-9 As víboras são especificamente usadas para descrever os fariseus e saduceus (“Quando João viu que muitos fariseus e saduceus iam ter com ele para serem batizados, disse-lhes: "Raça de víboras! Quem vos disse que podiam escapar do castigo que se aproxima?”" Evangelho Segundo Mateus 3.7). Um dos aspetos mais chocantes era que, segundo a pregação de João, os próprios líderes religiosos do seu tempo precisavam também de se arrepender e, segundo ele produzir frutos dignos de arrependimento. Muito provavelmente, João tinha a noção de que muitos dos que se aproximavam dele não eram sinceros, especialmente os fariseus e saduceus. Lembremos que João ministrava no deserto. Ele estava habituado às víboras que ali viviam, pela sua astúcia e facilmente confundidas com ramos de árvores, mordiam e envenenavam à primeira oportunidade que tivessem. Não é por acaso que o próprio Jesus mais à frente vai dizer acerca destes fariseus, segundo o que escreveu João:
“O vosso pai é o Diabo, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e não se firmou na verdade, pois nele não há verdade. Quando ele mente, fala do que lhe é próprio, pois é mentiroso e pai da mentira.” Evangelho Segundo João 8.44
Os fariseus e saduceus eram tidos como justos diante dos homens e, mais gravemente, aos seus próprios olhos. Um dos motivos da sua segurança eram de serem “...filhos de Abraão…” (Jo 8.33). Contudo, João advertia a produzirem “frutos dignos de arrependimento”, ou seja, demonstrar pelas boas obras que o arrependimento foi genuíno e sincero. João vai dirigir-se a alguns grupos de pessoas que se deslocavam a ele com exemplos de mudança de vida que demonstravam verdadeiro arrependimento.
v.10-14 As multidões buscam João com a pergunta “Que faremos?” Em todas as ocasiões relatadas em Lucas, João dá instruções básicas do modo de viver que os que eram batizados deveriam adotar: generosidade (repartir das túnicas), contentamento (não cobrar mais imposto do que era devido para os publicanos) e não abusar da autoridade (conter a violência e a ganância para os soldados romanos). Estas especificidades mostram que João conhecia bem o estilo de vida daquele tempo, e que ele não era assim tão removido da vida quotidiana quanto muitas vezes imaginamos.
v.15-17 Na expectativa messianica que pairava naqueles dias, tendo João quebrado o silêncio profético, ficava a pergunta no ar: “Será João o Prometido?”. Contudo, João só podia dar indicações de como as pessoas deviam de viver as suas vidas de forma correta, nele mesmo não tinha poder para as transformar. João sabia disto e afirma ao dizer “o que vem é mais poderoso do que eu…ele vos baptizará com o Espírito Santo e com fogo”. No versículo seguinte, a eira era uma superfície plana onde era separado o trigo da palha. Voltando à advertência de João aos fariseus, para entender este baptismo do Espírito Santo, começamos com uma conversa que o próprio Jesus tem com um fariseu, Nicodemos.
"5 Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. 6 O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. 7 Não te admires de eu te dizer: Necessário vos é nascer de novo. 8 O vento sopra onde quer, e ouves o seu som; mas não sabes de onde ele vem nem para onde vai; assim é todo que é nascido do Espírito." Evangelho Segundo João 3.5-8
Depois de ressurrecto, o Senhor Jesus adverte os seus discípulos:
"5 Porque, na verdade, João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias. "Atos dos Apóstolos 1.5
Mais à frente, o apóstolo Paulo escreve à igreja em Corinto:
13 Pois todos fomos batizados por um só Espírito para ser um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e a todos nós foi dado beber de um só Espírito. Epístola aos Coríntios 12.13
João viveu e pregou para preparar os corações do povo para a obra de Jesus, seu primo, o Cristo, Filho de Deus. Através da Sua vida, morte, ressurreição, ascensão e entronização, Deus redimiu um povo para si mesmo, povo esse regenerado pela presença do Espírito neles, provocando o novo nascimento e fazendo com que andem em novidade de vida na presença de Deus. Já não são dicas externas para melhorar a vida, mas o poder regenerador, transformador de Deus através da pessoa e obra de Jesus Cristo! Diante desta obra todos são chamados ao arrependimento e a crer. O Espírito opera no coração do pecador no arrependimento e fé em Jesus. Mas os que não crerem, serão como a palha jogada fora da eira, para o fogo que nunca se apaga. Que não deixemos passar nem mais um segundo sem tomar as promessas de Deus pelo que elas são. Que nem mais um segundo passe sem que eu me arrependa dos meus pecados e creia em Jesus e venha a andar em novidade de vida pelo poder do Espírito.
v.18-20 Pela pregação do arrependimento e depois de ter servido a Deus fielmente, João acaba por cair nas mãos da geração perversa do Seu tempo.
Conclusões finais
A vida de João Baptista, na sua excentricidade mas fidelidade, teve como único propósito apontar para Aquele para O qual todas as coisas foram Criadas, e pelo Seu Sangue derramado na cruz, para Ele separou um povo, remido, predestinado, chamado, justificado e glorificado para a glória de Deus (Carta aos Romanos 8.30).