Jesus traz fogo e divisão
Lucas 12.49-53 (Mateus 10.34-36; Marcos 10.38)
Introdução
O que é que une as pessoas? O que há de comum num grupo de amigos. Pense nos vários circulos sociais de que faz parte. Tem os seus colegas de trabalho, que trabalham numa mesma empresa, num mesmo projecto. Tem a sua família, que tem em comum a genética, a convivência e experiência de vida. Pode ter hobbies que o levam a ter amizades com quem partilha a mesma prática. Há muitas coisas à volta das quais as pessoas se podem unir, até mesmo religião. Muitos afirmar que Jesus veio para promover união e aceitação, mas o texto que vamos trazer hoje nos mostra uma faceta de nosso Senhor que pode por esta visão em questão.
Contexto
É difícil localizar este discurso de Jesus na harmonia dos Evangelhos, pois ele aparece de forma singular em Lucas. Os paralelos em Mateus e Marcos apresentam muitas diferenças, tanto no seu relato como na sua localização. Ainda assim, cremos que o texto é inspirado pelo Espírito Santo e que Deus decidiu e quis trazer este discurso ao Seu povo. Sabemos que não contém erros e que assim aconteceu factualmente e historicamente.
Comentário
v.49 Lançar fogo sobre a terra é uma expressão um tanto engimática e forte que invoca um senso de indagação de quem lê e certamente de quem estaria a ouvir Jesus discursar. Que fogo seria este? Existem pelo menos seis episódios diferentes registados na Bíblia em que Deus envia fogo do céu, três episódios são de destruição e julgamento, outros três são de consumo de sacrifício.
Destruição e julgamento:
Caiu fogo do céu e destruiu os rebanhos de Jó (Jó 1:16)
Fogo na forma de enxofre ardente choveu dos céus e destruiu Sodoma e Gomorra (Génesis 19:24)
Fogo do céu para julgar os soldados enviados pelo perverso rei Acazias para prender Elias - duas vezes, o fogo desceu do céu para consumir um grupo de cinquenta soldados enviados a serviço do rei (2 Reis 1:10,12).
Consumo de sacrifício:
Fogo desceu do céu para consumir o sacrifício que Davi ofereceu na eira de Araúna, o jebuseu (1 Crónicas 21:26)
Fogo para consumir o sacrifício na dedicação do templo, na presença do rei Salomão e do povo de Israel (2 Crónicas 7:1)
Fogo para consumir o sacrifício de Elias no Monte Carmelo, em resposta à simples oração do profeta (1 Reis 18:38)
O fogo pode também é usado para descrever a natureza de Deus pois lemos na carta aos Hebreus:
28 Por isso, recebendo nós um reino inabalável, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus de modo agradável, com reverência e santo temor;
29 porque o nosso Deus é fogo consumidor.
Hebreus 12.28-29
v.50 Em paralelo com o fogo do céu do versículo anterior, este versículo apresenta-nos outra expressão enigmática: o baptismo. Este versículo estabelece um paralelo com o versículo anterior, na medida em que procura transmitir a mesma ideia de uma forma diferente.
Vemos estas mesmas ideias quando João Baptista prega sobre a vinda de Jesus, como lemos no início do Evangelho de Lucas:
16 disse João a todos: Eu, na verdade, vos batizo com água, mas vem o que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo.
Lucas 3.16
Nestes dois versículos, o Senhor Jesus está a falar do juízo de Deus caindo como fogo do céu, por causa do pecado e da iniquidade, que consumirá o sacrifício necessário por causa do pecado, sacrifício esse que é Ele mesmo! O baptismo que Jesus menciona é os sofrimentos que Ele passará ao se submenter à ira do Pai na cruz do calvário. William Hendriksen, no seu comentário ao Evangelho de Lucas escreve:
“Jesus será avassalado por agonia. Ele será lançado no dilúvio de angústia extrema”
New Testament Commentary – Gospel of Luke, William Hendriksen, p.682, The Banner of Truth Trust, 1978)
Ao descrever esta realidade, Jesus alia duas expressões importantes, que são as traduzidas por que mais quero se já está aceso (bem quisera que já estivesse a arder, na tradução ARA), e quanto me angustio até que o mesmo se realize! Ambas as expressões demonstram que Cristo tinha plena noção até mesmo ansia de cumprir o Seu propósito na Encarnação, de tomar sobre Si os pecados do Seu povo e remir um povo para Si.
Destas palavras que muitos consideram um pouco duras da parte de Cristo, na realidade, vemos a firme resolução de Cristo de amar o Seu povo. Daqui retiramos uma aplicação devocional: que Cristo não hesitou em amar cada um dos Seus eleitos, sabendo perfeitamente aquilo que Lhe esperava.
Existe a tendência no meio religioso e até mesmo evangélico e protestante, de que Deus ama mais uns do que outros. Talvez até haja a tentação em nós de pensar assim, ao ver a aparente prosperidade e utilidade de uns em detrimento de outros na Igreja. Mas a realidade é que Deus demonstra o Seu perfeito a amor da mesma forma a todos os que lhe pertencem.
Jesus não o tolera amado irmão, Ele o ama. Foi por si que Ele ansiou ser o sacríficio baptizado pelo Juízo de Deus. Na cruz, Ele sofreu o inferno de cada um dos seus eleitos. E sabendo isto, Ele ansiava que assim fosse.
Houve em Cristo um desejo real de suportar sofrimento por si, por mim, e por todos aqueles que invocarem o Seu nome para a salvação. Esse é o Salvador que nós temos. Talvez na sua vida não tenha ninguém que anseie pela sua presença. No seu trabalho, os seus colegas o desprezam, o ignoram. Na sua família, não valorizam nem reconhecem os seus sacrifícios. Mas, em Cristo, temos um Salvador que se entregou ao pior dos sofrimentos, não por algo de bom que tenhamos feito, ou porque o mereçamos, mas porque Ele assim quis e escolheu nos amar. Porque espera para vir a este tão glorioso Salvador? O que o impede de reconhecer e invocar a este Deus que a este ponto nos amor? Hoje é o dia de vir a Ele. Venha a Ele, não resista mais. Lance fora tudo o que está para trás e clame a este tão bom e misericordioso Salvador, que está pronto a receber e a perdoar.
v.51 Este versículo descreve uma pergunta retórica que Jesus fez aos seus ouvintes, que certamente veio contradizer as suas expectativas. Na expectativa messiânica do primeiro século, o que se desejava era que o messias trouxesse o shalom ao povo de Israel – a liberdade e prosperidade, tendo sacudido o jugo romano que se inaugurou em 63 a.C. pelo general Pompeu, o Grande. O Reino que Jesus veio inaugurar era, na essência, espiritual, e pouco estava de acordo com o que era esperado. Isto foi de pedra de tropeço para muitos, que ao começar a entender isto, deixaram de seguir Jesus.
Seguir a Cristo implica muitas vezes deixar de lados as nossas expectativas, os nossos planos, os nossos sonhos. Ouvi recentemente uma mensagem de um pastor do nosso meio, cujo título era Viva os desejos do seu coração. Essencialmente, o pregador enfatizou que a forma de viver cristã era seguir apaixonadamente os desejos do nosso coração. Que só conseguiremos viver uma vida plena e realizada se procurarmos olhar para o nosso coração, percebermos quais são os nosso desejos e buscar vive-los intensamente. Mas Cristo e vem e diz: é isso que esperam que vos dê? Não. A resposta de Jesus a muitas das tuas inclinações será não. A resposta de Jesus a muitas das tuas expectativas será não.
v.52, 53 A divisão é um resultado esperado quando a pregação do Evangelho acontece. As acusações feitas aos cristãos primitivos foram prova de como o Evangelho traz divisão, separando-os da sua cultura e até das suas famílias. Vemos na história vários exemplos.
Lutero e a divisão por causa da justificação pela fé. O Debate de Leipzig (alemão: Disputa de Leipziger) foi uma disputa teológica originalmente entre Andreas Karlstadt, Martinho Lutero e Johann Eck. Karlstadt, o reitor da Faculdade de Teologia de Wittenberg, sentiu que deveria defender Lutero contra o comentário crítico de Eck sobre as 95 Teses e então desafiou Johann Eck, professor de teologia na Universidade de Ingolstadt, para um debate público sobre as doutrinas do livre arbítrio e graça. Para além disso, o debate deve incluiu questões como a existência do purgatório, a venda de indulgências, a necessidade e os métodos de penitência e a legitimidade da autoridade papal. E foi a firmeza de Lutero que levou o Papa Leão X a censurar Lutero e a ameaçá-lo com a excomunhão da Igreja Católica na sua bula papal de junho de 1520, Exsurge Domine, que proibia que as opiniões de Lutero fossem pregadas ou escritas.
O Evangelho traz, necessariamente, divisão. Divide a Igreja do mundo, a justiça do pecado, o crente do ímpio, a ovelha do bode, a doutrina da heresia, a fidelidade da apostasia.
Mas a divisão vem pelo Evangelho e não por motivações egoístas. Paulo escreveu aos Romanos:
17 Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles,
18 porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos.
Romanos 16.17-18
Precisamos de colocar a nossa consciência diante de Deus e da Sua Palavra para assumirmos as nossas convicções, com um desejo sincero e profundo de honrar, obedecer e glorificar a Deus e amar o próximo, custe o que custar.
Conclusões finais
Jesus veio ao mundo amar os Seus e amou-os até ao fim, submetendo-se ao baptismo do Juízo de Deus na cruz do Calvário, por tão grande amor por nós. Ele está pronto a recebê-lo, a perdoá-lo e a santificá-lo. Venha a Ele.
N’Ele, as suas expectativas, desejos e sonhos serão muitas vezes negados e fracassados, para que Ele possa ter lugar preeminente na sua mente e coração.
Também, esteja preparados para assumir a sua posição em Cristo, os seus valores bíblicos e a sã doutrina, diante do mundo, diante da família e mesmo diante de movimentos apóstatas, custe o que custar, e o próprio Cristo será a nossa força.